terça-feira, 26 de outubro de 2010

A IGREJA CATÓLICA NO MÉDIO ORIENTE




Terminou este Domingo em Roma o Sínodo dos Bispos para o Médio Oriente, convocado pelo Papa Bento XVI. Enquanto aguardamos os textos finais vale a pena retomar um trecho do documento inicial (Lineamenta) que orientou os trabalhos dos padres sinodais.
O texto que escolhemos da Introdução descreve o percurso histórico das comunidades cristãs na Terra Santa. Vale a pena a sua leitura para nos situarmos com realismo perante a realidade que vamos encontrar.




A IGREJA CATÓLICA NO MÉDIO ORIENTE



1. Breve excursus histórico: unidade na verdade
Todas as Igrejas católicas no Médio Oriente, assim como cada comunidade cristã no mundo, remontam à primeira Igreja cristã de Jerusalém, unida pelo Espírito Santo no dia de Pentecostes. Elas dividiram-se no século V, depois dos Concílios de Éfeso e de Calcedónia, principalmente por questões cristológicas. Antes da divisão, ela deu vida às Igrejas conhecidas hoje com o nome de "Igreja Apostólica Assíria do Oriente" (que era chamada nestoriana) e "Igrejas Ortodoxas Orientais", ou seja, as Igrejas coptas, sírias e arménias, que eram chamadas monofisitas. Muitas vezes estas divisões tiveram lugar também por motivos político-culturais, como mostram os teólogos medievais do Oriente pertencentes às três grandes tradições denominadas "melquitas", "jacobitas" e "nestorianas". Todos eles ressaltaram que na base desta divisão não havia algum motivo dogmático. Em seguida, deu-se o grande cisma do século XI, que separou Constantinopla de Roma e, sucessivamente, o Oriente Ortodoxo do Ocidente Católico. Todas estas divisões ainda hoje existem nas várias Igrejas do Médio Oriente.
Depois das divisões e das separações, foram empreendidos periodicamente esforços para reconstruir a unidade do Corpo de Cristo. Neste esforço de ecumenismo formaram-se as Igrejas católicas orientais: arménia, caldeia, melquita, síria e copta. No início estas Igrejas foram tentadas pela polémica com as Igrejas ortodoxas irmãs, mas com frequência foram também fervorosas defensoras do Oriente cristão.
A Igreja maronita manteve a própria unidade no âmbito da Igreja universal e não conheceu, no decurso da sua história, uma divisão eclesial interna. O Patriarcado Latino de Jerusalém, instituído com as Cruzadas, foi restabelecido no século XIX, graças à presença contínua dos Padres Franciscanos, sobretudo na Terra Santa, desde o início do século XIII.
Hoje as Igrejas católicas do Oriente são sete, na maioria árabes ou arabizadas. Algumas delas estão presentes também na Turquia e no Irão. Provêm de tradições culturais, e portanto também litúrgicas, diferentes: grega, síria, copta, arménia ou latina, o que constitui a sua admirável riqueza e complementaridade. Elas estão unidas na mesma comunhão com a Igreja universal em volta do Bispo de Roma, sucessor de Pedro, corifeu dos apóstolos (hâmat ar-rusul). A sua riqueza deriva da sua própria diversidade, mas o excessivo apego ao rito e à cultura pode empobrecê-las. A colaboração entre os fiéis é habitual e natural, a todos os níveis.



2. Apostolicidade e vocação missionária
De resto, as nossas Igrejas são de origem apostólica e os nossos países foram o berço do Cristianismo. Como disse o Santo Padre Bento XVI a 9 de Junho de 2007, elas são guardiãs viventes das origens cristãs[1]. São terras abençoadas pela presença do próprio Cristo e pelas primeiras gerações cristãs. Seria uma perda para a Igreja universal se o Cristianismo desaparecesse ou se debilitasse precisamente lá onde nasceu. Temos neste aspecto uma grave responsabilidade: não só manter a fé cristã nestas terras santas, mas ainda mais, manter o espírito do Evangelho nestas populações cristãs e nas suas relações com as não cristãs, e conservar a memória das origens.
Enquanto apostólicas, as nossas Igrejas têm a missão particular de anunciar o Evangelho a todo o mundo. Ao longo da história, este impulso estimulou diversas das nossas Igrejas: em Núbia e na Etiópia, na Península Arábica, na Pérsia, na Índia, até à China. Hoje devemos verificar que este impulso evangélico com frequência é contido e a chama do Espírito parece ter-se debilitado.
Agora, para a nossa história e a nossa cultura, estamos próximos de milhões de pessoas, quer cultural quer espiritualmente. Portanto, compete a nós partilhar com eles a mensagem de amor do Evangelho que recebemos. Neste momento no qual populações inteiras estão desorientadas e procuram um indício de esperança, nós podemos dar-lhes a esperança que está em nós pelo espírito que foi derramado nos nossos corações (cf. Rm 5, 5).



3. Papel dos cristãos na sociedade, apesar de serem uma minoria
Não obstante as suas diferenças, as nossas sociedades árabes, turcas e iranianas têm características comuns. A tradição e o modo de vida tradicional prevalecem, sobretudo no que se refere à família e à educação. O confessionalismo marca tanto as relações entre os cristãos como com os não-cristãos e reflecte-se profundamente nas mentalidades e nos comportamentos. A religião é um elemento de identificação que pode separar do outro.
A modernidade penetra cada vez mais na sociedade: o acesso às redes televisivas do mundo e a Internet introduziram, na sociedade civil e entre os cristãos, novos valores mas também uma perda de valores. Como resposta, difundem-se cada vez mais os grupos fundamentalistas islâmicos. O poder reage com o autoritarismo, com o controle da imprensa e da mídia, enquanto a maioria aspira por uma verdadeira democracia.
Apesar de os cristãos serem em todas as partes do Médio Oriente uma escassa minoria (com excepção do Líbano), que vai de menos 1% (Irão, Turquia) a 10% (Egipto), contudo eles irradiam dinamismo activo. O perigo consiste no fechamento em si e no receio do outro. Por isso, é necessário que fortaleçamos a fé e a espiritualidade dos nossos fiéis e, ao mesmo tempo, reforcemos o vínculo social e a solidariedade entre eles, sem cair numa atitude guetizante. Por outro lado, a educação é o maior investimento. As nossas Igrejas e as nossas escolas poderiam ajudar mais os menos afortunados.

Vaticano, 8 de Dezembro de 2009




In, www.vatican.va

domingo, 24 de outubro de 2010

A Rainha do Sabat


O Shabat


O Shabat (do hebraico שבת, shabāt; shabos ou shabes na pronúncia asquenazita, "descanso/inatividade"), também grafado como sabat (português), é o nome dado ao dia de descanso semanal no judaísmo, simbolizando o sétimo dia no Génesis, após os seis dias da Criação. Apesar de ser comummente dito ser o sábado de cada semana, é observado a partir do pôr-do-sol da sexta-feira até o pôr-do-sol do sábado. O exacto momento de início e final do shabat varia de semana para semana e de lugar para lugar, de acordo com o horário do pôr-do-sol.
O shabat é observado tanto por mandamentos positivos, como as três refeições festivas (jantar de sexta-feira, almoço de sábado e refeição de final de tarde no sábado), e restrições. As actividades proibidas no shabat derivam de trinta e nove acções básicas (melachot, livremente traduzido como "trabalhos") que são descritas pelo Talmud a partir de fontes bíblicas

A Rainha de Sabat e Maria
No Judaísmo o Sabat* representa, na terra, a vida pré-messiânica, uma espécie de antecâmara do Céu, um antegozo da vida que está por vir. E o próprio Sabat é visto, misticamente, como uma Virgem (quer dizer, noiva) Rainha: a Rainha de Sabat.
Em cada sexta-feira à noite, o Sabat iminente é saudado com o canto:

Vem, meu bem-amado,
Saudemos Sabat, a noiva, a Rainha dos nossos dias.
Vinde, saudemos todos Sabat, a Rainha suprema.
Fonte das bênçãos em todas as religiões do mundo,
Ungida e reinando desde os tempos mais remotos,
Já imaginada e preconcebida por Deus, precedeu os seis dias da Criação.

Vem, meu bem-amado,
Saudemos Sabat, a noiva, a Rainha dos nossos dias.
Levanta-te e sacode a poeira da terra,
Reveste-te com gloriosas vestes que fazem distinguir teu valor.
O Messias nos conduzirá a todos a esse novo nascimento,
Minhalma volta a sentir agora, os raios ardentes da redenção.

Vem, meu bem-amado,
Saudemos Sabat, a noiva, a Rainha dos nossos dias.
Desperta e levanta-te, para saudar a nova luz,
Pois, em teu esplendor, o mundo será iluminado.
Canta, que as trevas já desapareceram do nosso olhar.
O Senhor manifesta a sua Glória através de ti.

Vem, meu bem-amado,
Saudemos Sabat, a noiva, a Rainha dos nossos dias.
Então, teus destruidores é que serão destruídos,
Os devastadores ao longe, viverão no vazio,
Teu Deus, então, celebrará envolto num excesso de alegria,
Como um noivo que reencontra o olhar da sua noiva.

Nesta oração, encontramos, alguns paralelos entre as imagens do Sabat e a compreensão católica da Bem-aventurada Virgem Maria, como Rainha do Céu.

Roy Schoeman
In, www.mariedenazareth.com

sábado, 23 de outubro de 2010

Todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado



30º Domingo do Tempo Comum

24 de Outubro de 2010


Evangelho – Lc 18,9-14


Naquele tempo, Jesus disse a seguinte parábola para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros: «Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro publicano. O fariseu, de pé, orava assim: ‘Meu Deus, dou-Vos graças por não ser como os outros homens, que são ladrões, injustos e adúlteros, nem como este publicano. Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de todos os meus rendimentos’. O publicano ficou a distância e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu; Mas batia no peito e dizia: ‘Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador’. Eu vos digo que este desceu justificado para sua casa e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado».


AMBIENTE


Mais uma vez, Lucas coloca-nos no “caminho de Jerusalém”, para nos deixar uma lição sobre o “Reino”. Desta vez, Jesus propõe uma parábola “para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”. Os protagonistas da história são um fariseu e um publicano. Os “fariseus” formavam um dos grupos mais interessantes e com mais impacto na sociedade palestina do tempo de Jesus. Descendentes desses “piedosos” (“hassidim”) que apoiaram o heróico Matatias na luta contra Antíoco IV Epifanes e a helenização forçada, eram os defensores intransigentes da “Torah” (quer da “Torah” escrita, quer da “Torah” oral – isto é, dos preceitos não escritos, mas que os fariseus tinham deduzido da “Torah” escrita); no dia a dia, procuravam cumprir escrupulosamente a Lei e esforçavam-se por ensinar a Lei ao Povo: só assim – pensavam eles – o Povo chegaria a ser santo e o Messias poderia vir trazer a salvação a Israel. Tratava-se de um grupo sério, verdadeiramente empenhado na santificação do Povo de Deus. No entanto, o seu fundamentalismo em relação à “Torah” será, várias vezes, criticado por Jesus: ao afirmarem a superioridade da Lei, desprezavam muitas vezes o homem e criavam no Povo um sentimento latente de pecado e de indignidade que oprimia as consciências. Os “publicanos” estavam ligados à cobrança dos impostos, ao serviço das forças romanas de ocupação. Tinham fama de utilizar o seu cargo para enriquecer de modo imoral; e é preciso dizer que, na generalidade, essa fama era bem merecida. De acordo com a Mishna, estavam afectados permanentemente de impureza e não podiam sequer fazer penitência, pois eram incapazes de conhecer todos aqueles a quem tinham defraudado e a quem deviam uma reparação. Se um publicano, antes de aceitar o cargo, fazia parte de uma comunidade farisaica, era imediatamente expulso dela e não podia ser reabilitado, a não ser depois de abandonar esse cargo. Quem exercia tal ofício, estava privado de certos direitos cívicos, políticos e religiosos; por exemplo, não podia ser juiz nem prestar testemunho em tribunal, sendo equiparado ao escravo.

MENSAGEM

No fariseu e no publicano da parábola, Lucas põe em confronto dois tipos de atitude face a Deus. O fariseu é o modelo de um homem irrepreensível face à Lei, que cumpre todas as regras e leva uma vida íntegra. Ele está consciente de que ninguém o pode acusar de cometer acções injustas, nem contra Deus, nem contra os irmãos (e, aparentemente, é verdade, pois a parábola não nos diz que ele estivesse a mentir). Evidentemente, está contente (e tinha razões para isso) por não ser como esse publicano que também está no Templo: os fariseus tinham consciência da sua superioridade moral e religiosa, sobretudo em relação aos pecadores notórios (como é o caso deste publicano). O publicano é o modelo do pecador. Explora os pobres, pratica injustiças, trafica com a miséria e não cumpre as obras da Lei. Ele tem, aliás, consciência da sua indignidade, pois a sua oração consiste apenas em pedir: “meu Deus, tende compaixão de mim que sou pecador”. O comentário final de Jesus sugere que o publicano se reconciliou com Deus (a expressão utilizada é “desceu justificado para sua casa” – o que nos leva à doutrina paulina da justificação: apesar de o homem viver mergulhado no pecado, Deus, na sua misericórdia infinita e sem que o homem tenha méritos, salva-o). Porquê? O problema do fariseu é que pensa ganhar a salvação com o seu próprio esforço. Para ele, a salvação não é um dom de Deus, mas uma conquista do homem; se o homem levar uma vida irrepreensível, Deus não terá outro remédio senão salvá-lo. Ele está convencido de que Deus lhe deve a salvação pelo seu bom comportamento, como se Deus fosse apenas um contabilista que toma nota das acções do homem e, no fim, lhe paga em consequência. Ele está cheio de auto-suficiência: não espera nada de Deus, pois – pensa ele – os seus créditos são suficientes para se salvar. Por outro lado, essa auto-suficiência leva-o, também, ao desprezo por aqueles que não são como ele; considera-se “à parte”, “separado”, como se entre ele e o pecador existisse uma barreira… É meio caminho andado para, em nome de Deus, criar segregação e exclusão: é aí que leva a religião dos “méritos”. O publicano, ao contrário, apoia-se apenas em Deus e não nos seus méritos (que, aliás, não existem). Ele apresenta-se diante de Deus de mãos vazias e sem quaisquer pretensões; entrega-se apenas nas mãos de Deus e pede-Lhe compaixão… E Deus “justifica-o” – isto é, derrama sobre ele a sua graça e salva-o – precisamente porque ele não tem o coração cheio de auto-suficiência e está disposto a aceitar a salvação que Deus quer oferecer a todos os homens. Esta parábola, destinada a “alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”, sugere que esses que se presumem de justos estão, às vezes, muito longe de Deus e da salvação.


In Dehonianos - Liturgia

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Nazaré e o Sinai, mensageiros da universalidade


O Sinai, como já nos faziam observar certos autores do antigo judaísmo, situa-se fora da terra prometida da Palestina. Mesmo não inerente à Terra Santa, esta montanha foi escolhida por Deus, objectivando oferecer a Israel, o seu dom maior, que é a Torá.


Por que teria Deus empregue esta estratégia? Resposta: porque o Senhor destinava a sua Lei, não somente a Israel, mas igualmente, a todos os povos, por intermédio de Israel.



Nazaré da Galileia é, também, uma localidade quase às margens da Terra Santa; a Galileia é a terra dos estrangeiros (Is 8, 23 nos Setenta e Mt 4, 15). O que pode, então, resultar de positivo, de bom? Assim pensam os homens. Em contrapartida, os caminhos de Deus são bem diferentes dos nossos. Observamos, efectivamente, que na geografia dos Evangelhos, a Galileia torna-se sinónimo de universalidade.
Jesus, o novo Moisés, ali pronunciou seu discurso inaugural das Bem-aventuranças (Mt 5, 1-12); ali operou o primeiro e protótipo de todos os sinais (Jô 2, 1-12); após a ressurreição, ali ordenou aos apóstolos que pregassem o Evangelho a todas as nações (Mt 28, 16-20).




E foi em Nazaré da Galileia que o Verbo se fez carne.

sábado, 16 de outubro de 2010

«Orar sempre sem desanimar»





29º Domingo do Tempo Comum


17 de Outubro de 2010



Evangelho - Lc 18, 1-8

Naquele tempo, Jesus disse aos seus discípulos uma parábola sobre a necessidade de orar sempre sem desanimar: «Em certa cidade vivia um juiz que não temia a Deus nem respeitava os homens. Havia naquela cidade uma viúva que vinha ter com ele e lhe dizia: ‘Faz-me justiça contra o meu adversário’. Durante muito tempo ele não quis atendê-la. Mas depois disse consigo: ‘É certo que eu não temo a Deus nem respeito os homens; mas, porque esta viúva me importuna, vou fazer-lhe justiça, para que não venha incomodar-me indefinidamente’».
E o Senhor acrescentou: «Escutai o que diz o juiz iníquo!... E Deus não havia de fazer justiça aos seus eleitos, que por Ele clamam dia e noite, e iria fazê-los esperar muito tempo? Eu vos digo que lhes fará justiça bem depressa. Mas quando voltar o Filho do homem, encontrará fé sobre esta terra?»


AMBIENTE
O Evangelho apresenta-nos mais uma etapa do “caminho de Jerusalém”. O texto que hoje nos é proposto vem na sequência do discurso escatológico sobre a vinda gloriosa do Filho do Homem (cf. Lc 17,20-37). A parábola do juiz e da viúva deve, pois, ser entendida neste ambiente.
Trata-se de um texto que não tem paralelo noutro evangelista; no entanto, é similar à parábola do amigo importuno que vem pedir pão a meio da noite e que é atendido por causa da sua insistência (cf. Lc 11,5-8).
Não esqueçamos que Lucas escreveu o terceiro Evangelho durante a década de 80… É uma época em que as comunidades cristãs sofrem por causa da hostilidade dos judeus e dos pagãos e em que já se anunciam as grandes perseguições que dizimaram as comunidades cristãs no final do séc. I. Os cristãos estão inquietos, desanimados e anseiam pela segunda vinda de Cristo – isto é, pela intervenção definitiva de Deus na história para derrotar os maus e salvar o seu Povo.


MENSAGEM
O nosso texto consta de uma parábola e da sua aplicação teológica.
Os personagens centrais da parábola (vers 2-5) são uma viúva e um juiz. A viúva, pobre e injustiçada (na Bíblia, é o protótipo do pobre sem defesa, vítima da prepotência dos ricos e dos poderosos), passava a vida a queixar-se do seu adversário e a exigir justiça; mas o juiz, “que não temia Deus nem os homens”, não lhe prestava qualquer atenção… No entanto, o juiz – apesar da sua dureza e insensibilidade – acabou por fazer justiça à viúva, a fim de se livrar definitivamente da sua insistência importuna. Apresentada a parábola, vem a sua aplicação teológica (vers. 6-8). Se um juiz prepotente e insensível é capaz de resolver o problema da viúva por causa da sua insistência, Deus (que não é, nem de perto nem de longe, um juiz prepotente e sem coração) não iria escutar os “seus eleitos que por Ele clamam dia e noite e iria fazê-los esperar muito tempo?”
Naturalmente, estamos diante de uma pergunta retórica. É evidente que, se até um juiz insensível acaba por fazer justiça a quem lhe pede com insistência, com muito mais motivo Deus – que é rico em misericórdia e que defende sempre os débeis – estará atento às súplicas dos seus filhos.
Dado o contexto em que a parábola aparece, é certo que Lucas pretende dirigir-se a uma comunidade cristã cercada pela hostilidade do mundo, que começava a ver no horizonte próximo o espectro das perseguições e que estava desanimada porque, aparentemente, Deus não escutava as súplicas dos crentes e não intervinha no mundo para salvar a sua Igreja. A resposta que Lucas deixa aos seus cristãos é a seguinte: ao contrário do que parece, Deus não abandonou o seu Povo, nem é insensível aos seus apelos; Ele tem o seu projecto, o seu plano e o seu tempo próprio para intervir… Aos crentes resta moderar a sua impaciência e confiar em que Ele não deixará de intervir para os libertar. Que é que tudo isto tem a ver com a oração? Porque é que esta é uma parábola sobre a necessidade de rezar (“Jesus disse-lhes uma parábola sobre a necessidade de orar sempre, sem desanimar” – vers. 1)? Lucas pede aos cristãos a quem a mensagem se destina que, apesar do aparente silêncio de Deus, não deixem nunca de dialogar com Ele. É nesse diálogo que entendemos os projectos e os ritmos de Deus; é nesse diálogo que Deus transforma os nossos corações; é nesse diálogo que aprendemos a entregar-nos nas mãos de Deus e a confiar n’Ele. Sobretudo, que nada (nem o desânimo, nem a desconfiança perante o silêncio de Deus) nos leve a desistir de uma verdadeira comunhão e de um profundo diálogo com Deus.




In Dehonianos - Liturgia

domingo, 10 de outubro de 2010

«A tua fé te salvou»

28º Domingo do Tempo Comum
10 de Outubro de 2011

EVANGELHO – Lc 17,11-19

Naquele tempo, indo Jesus a caminho de Jerusalém, passava entre a Samaria e a Galileia. Ao entrar numa povoação, vieram ao seu encontro dez leprosos. Conservando-se a distância, disseram em alta voz: «Jesus, Mestre, tem compaixão de nós». Ao vê-los, Jesus disse-lhes: «Ide mostrar-vos aos sacerdotes». E sucedeu que no caminho ficaram limpos da lepra. Um deles, ao ver-se curado, voltou atrás, glorificando a Deus em alta voz, e prostrou-se de rosto por terra aos pés de Jesus para Lhe agradecer. Era um samaritano. Jesus, tomando a palavra, disse: «Não foram dez que ficaram curados? Onde estão os outros nove? Não se encontrou quem voltasse para dar glória a Deus senão este estrangeiro?» E disse ao homem: «Levanta-te e segue o teu caminho; a tua fé te salvou».

AMBIENTE
Mais uma vez Lucas apresenta um episódio situado no “caminho de Jerusalém” (esse “caminho espiritual”, ao longo do qual os discípulos vão aprendendo e interiorizando os valores e a realidade do “Reino”). No “caminho” de Jesus e dos discípulos aparecem, portanto, dez leprosos. O leproso é, no tempo de Jesus, o protótipo do marginalizado… Além de causar naturalmente repugnância pela sua aparência e de infundir medo de contágio, o leproso é um impuro ritual (cf. Lev 13-14), a quem a teologia oficial atribuía pecados especialmente gravosos (a lepra era o castigo de Deus para esses pecados); por isso, o leproso não podia sequer entrar na cidade de Jerusalém, a fim de não despurificar a cidade santa.
Devia afastar-se de qualquer convívio humano para que não contaminasse os outros com a sua impureza física e religiosa. Em caso de cura, devia apresentar-se diante de um sacerdote, a fim de que ele comprovasse a cura e lhe permitisse a reintegração na vida normal (cf. Lev 14). Podia, então, voltar a participar nas celebrações do culto. Um dos leprosos (precisamente aquele que vai desempenhar o papel principal, neste episódio) é samaritano. Os samaritanos eram desprezados pelos judeus de Jerusalém, por causa do seu sincretismo religioso. A desconfiança religiosa dos judeus em relação aos samaritanos começou quando, em 721 a.C. (após a queda do reino do Norte), os colonos assírios invadiram a Samaria e começaram a misturar-se com a população local. Para os judeus, os habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se… Após o regresso do exílio da Babilónia, os habitantes de Jerusalém recusaram qualquer ajuda dos samaritanos na reconstrução do Templo e evitaram os contactos com esses hereges, “raça misturada com pagãos”. A construção de um santuário samaritano no monte Garizim consumou a separação e, na perspectiva judaica, lançou definitivamente os samaritanos nos caminhos da infidelidade a Jahwéh. Algumas picardias mútuas nos séculos seguintes consolidaram a inimizade entre judeus e samaritanos. Na época de Jesus, a relação entre as duas comunidades era marcada por uma grande hostilidade.

MENSAGEM
O episódio dos dez leprosos (que é exclusivo de Lucas) insere-se perfeitamente na óptica teológica de um evangelho cujo objectivo fundamental é apresentar Jesus como o Deus que Se fez pessoa para trazer, com gestos concretos, a salvação/libertação a todos os homens, particularmente aos oprimidos e marginalizados.
É esse o ponto de partida da história que Lucas nos conta: ele mostra que Deus tem uma proposta de vida nova e de libertação para oferecer a todos os homens. O número dez tem, certamente, um significado simbólico: significa “totalidade” (o judaísmo considerava necessário que pelo menos dez homens estivessem presentes, a fim de que a oração comunitária pudesse ter lugar, porque o “dez” representa a totalidade da comunidade). A presença de um samaritano no grupo indica, contudo, que essa salvação oferecida por Deus, em Jesus, não se destina apenas à comunidade do “Povo eleito”, mas se destina a todos os homens, sem excepção, mesmo àqueles que o judaísmo oficial considerava definitivamente afastados da salvação.
Contudo, o acento do episódio de hoje é posto – mais do que no episódio da cura em si – no facto de que, dos dez leprosos curados, só um tenha voltado para trás para agradecer a Jesus e no facto de este ser um samaritano. Lucas está interessado em mostrar que quem recebe a salvação deve reconhecer o dom de Deus e deve estar agradecido… E avisa que, com frequência, são os hereges, os marginais, os desprezados, aqueles que a teologia oficial considera à margem da salvação, que estão mais atentos aos dons de Deus. Haverá aqui, certamente, uma alusão à autosuficiência dos judeus que, por se sentirem “Povo eleito”, achavam natural que Deus os cumulasse dos seus dons; no entanto, não reconheceram a proposta de salvação que, através de Jesus, Deus lhes ofereceu… Certamente haverá aqui, também, um apelo aos discípulos de Jesus, para que não ignorem o dom de Deus e saibam responder-Lhe com a gratidão e a fé (entendida como adesão a Jesus e à sua proposta de salvação).
In Dehonianos - Liturgia

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

São Jerónimo


S. Jerónimo, presbítero, cardeal, Doutor da Igreja, séc. IV

Nasceu em Estridon (Dalmácia, hoje Croácia) cerca do ano 340.
Tendo herdado dos pais uma pequena fortuna, aproveitou para realizar a sua vocação de amante dos estudos. Assim, viajou para Roma, onde procurou os melhores mestres de retórica e onde passou uma juventude um tanto livre. Ele mesmo nos refere com verdadeira dor os desvarios da sua juventude.
Um dos seus ideais mais intensos foi o cuidado de formar uma grande biblioteca. Outra das suas ocupações favoritas e que prova também o seu fundo sério e cristão, foi a de visitar os túmulos dos mártires. Nos Domingos, em companhia dos melhores amigos, visitava os labirintos escuros das Catacumbas, contemplava as capelas e esforçava-se por decifrar os epitáfios dos mártires.
Recebeu o baptismo do Papa Libério, já com 25 anos de idade. Viajando pela Gália, entrou em contacto com o monacato ocidental e retirou-se com alguns amigos para Aquiléia, formando uma pequena comunidade religiosa, cuja principal actividade era o estudo da Bíblia e das obras de Teologia.
São Jerónimo tinha um carácter indómito e gostava de opções radicais; desejou, portanto, conhecer e praticar o rigor da vida monástica que se vivia no Oriente, pátria do monaquismo. Esteve vários anos no deserto da Síria, entregando-se a jejuns e penitências tão rigorosas, que o levaram aos limites da morte.
Abandonando o meio monástico, dirigiu-se a Constantinopla, atraído pela fama oratória de São Gregório de Nazianzeno, que lhe abriu o espírito ao amor pela exegese da Sagrada Escritura. Por volta do ano 373 ou 374 resolveu lançar-se a uma peregrinação à Terra Santa mas uma prolongada doença obrigou-o a permanecer muito tempo em Antioquia da Síria, onde se especializou no estudo da lingual grega e prestou serviços relevantes ao bispo Paulino, que o quis ordenar sacerdote, no ano 379. No entanto, Jerónimo não sentia vocação à actividade pastoral e quase nunca exerceu o ministério sacerdotal. Tendo que optar entre a sua vocação inata de escritor e o chamamento à ascese monástica, encontrou uma conciliação entre estes extremos que marcaria o caminho da sua vida: seria um monge mas um monge para quem o retiro era ocasião para uma dedicação total ao estudo, à reflexão, à férrea disciplina necessária à produção da sua obra, que queria dedicar na sua totalidade à difusão do cristianismo. Dentro desta vocação e severa disciplina, estudou o hebraico com um esforço sobre humano e aperfeiçoou os seus conhecimentos do grego para poder compreender melhor as Escrituras nas línguas originais.
Chamado a Roma pelo Papa Dâmaso no ano 382, que o escolheu como secretário particular, recebeu do mesmo a incumbência de converter a Bíblia para o latim, graças ao conhecimento que tinha desta língua, do grego e do hebraico. O Papa desejava, de facto, uma tradução da Bíblia mais fiel em tudo aos textos originais, traduzida e apresentada num latim mais correcto, que pudesse servir de texto único e uniforme na liturgia. Até à altura existiam traduções populares muito imperfeitas e diversificadas, que criavam confusão.
O espírito de São Jerónimo fica bem retratado por estas frases que dirigiu ao Papa: “Eu mantenho-me unido a Sua Santidade, isto é, à Sé de Pedro. Sobre esta rocha sei que está fundada a Igreja. Fora da Igreja não há salvação. (…) Quem está fora da Igreja do Senhor, não pode ser puro”.
No ano de 385 São Jerónimo abandona Roma definitivamente, e toma, pela segunda vez, o caminho de Jerusalém. Depois de percorrer as colónias monásticas do deserto da Nítria, estabelece-se definitivamente em Belém, no ano de 386, onde viveu 34 anos numa contínua e incansável actividade literária, de oração e penitência.
O trabalho de São Jerónimo começado em Roma durou praticamente toda a sua vida. Na tradução, São Jerónimo revela um agudo senso crítico, um amor incontido à Palavra de Deus e uma riqueza de informações sobre os tempos e lugares relativos à Bíblia.
Como dele disse o Papa Bento XVI: A preparação literária e a ampla erudição permitiram que Jerónimo fizesse a revisão e a tradução de muitos textos bíblicos: um precioso trabalho para a Igreja latina e para a cultura ocidental. Com base nos textos originais em grego e em hebraico e graças ao confronto com versões anteriores, ele realizou a revisão dos quatro Evangelhos em língua latina, depois o Saltério e grande parte do Antigo Testamento. Tendo em conta o original hebraico e grego, a Septuaginta, a versão grega clássica do Antigo Testamento que remontava ao tempo pré-cristão, e as precedentes versões latinas, Jerónimo, com a ajuda de outros colaboradores, pôde oferecer uma tradução melhor: ela constitui a chamada "Vulgata", o texto "oficial" da Igreja latina, que foi reconhecido como tal pelo Concílio de Trento e que, depois da recente revisão, permanece o texto "oficial" da Igreja de língua latina.

Eis algumas das palavras de São Jerónimo que nos mostram a sua fidelidade, aplicada no seu trabalho: “Cumpro o meu dever, obedecendo aos preceitos de Cristo, que diz: Examinai as Escrituras e procurai e encontrareis, para que não tenha que ouvir o que foi dito aos judeus: Estais enganados, porque não conheceis as Escrituras nem o poder de Deus. Se, de facto, como diz o Apóstolo Paulo, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de Deus, aquele que não conhece as Escrituras, não conhece o poder de Deus, nem a Sua sabedoria. Ignorar as Escrituras é ignorar a Cristo”.
Até aos últimos momentos, São Jerónimo conservou clara a inteligência e vigorosa e firme a espada da pena. Faleceu a 30 de Setembro de 419 ou 420 perto de Belém, na sua cela, próximo à gruta da Natividade.
É reconhecido pela Igreja Católica como santo e Doutor da Igreja, e como santo pela Igreja Ortodoxa Oriental.

Ana Líbano Monteiro